Eu Mesmo Serei O Senhor do Meu Fim(A Papa Hemingway)

 

Ketchum, Idaho, 02 de julho de 1961

 

Ele sentiu o calor invadir o quarto, o conforto se derramar sobre a pele, aliviando os últimos resquícios do inverno. Eram tempos mais que difíceis.

Parecia que a vibração dos choques ainda ecoava em sua cabeça, Encolheu-se. Não queria mais aquilo, não mais.

Virou-se para a janela, para sentir o sol no rosto; de repente, se lembrou do sol de Pamplona, da Fiesta, e dos que estavam com ele naquele tempo: Harold  Loeb, dos Passos, e ela…Duff Twysden, tão bela, tão intensa, o sorriso como um eterno convite ao prazer; tantas vidas…Pareceu ouvir o barulho do mar, o odor salino a invadir as narinas; Cojimar , a Finca, as águas azuis, o balanço do Pilar, o cheiro das iscas e da maresia. “Por que tudo isso, aqui, agora?”

Recostou na cabeceira, mas a tontura residual dos choques o fez deitar de novo. Nada mais havia. Nada. O tempo consumira tudo, Paris, Pamplona , Cuba, todos agora nada mais que fantasmas num vazio infinito. Não mais a África, nada mais. Ouviu o barulho da conversa na sala, sentou a consternação da conversa, sabia que falavam dele, dos malditos eletrochoques. Não fariam mais isso com ele, nunca mais.Sentiu novamente o calor, o odor salino, o barulho do mar. Como poderia ser?

Naquele mesmo dia, em Cojimar, Gregório Fuentes, antigo patrão do Pilar e velho amigo, recebia um casal de Illinois para uma jornada de pesca, contornando Bacuranao, onde era o tempo dos “azuis” maiores. Abriu ainda mais o sorriso quando soube que eles vinham de Oak Park, cidade natal de Papa; depois de saudá-los, foi a preparar as iscas, o barco e os suprimentos. Rezava para ser um dia proveitoso.

Virou-se de novo na cama e veio a lembrança de Martha, a mais viva , a mais vibrante; o que se poderia mais dizer, de uma pessoa que era, simplesmente, tudo? Os tempos de Madri, o amor no meio das bombas, os papéis perdidos no meio da fuzilaria, a China, tanto em tão pouco tempo…Tentou levantar, resistir, mas nada mais obedecia. Tudo acabara. O que teria pela frente? Dor, declínio e uma morte ignominiosa. Nâo deixaria isso acontecer.

“Que tempo incrível”, disse Gregório, de si para si, enquanto arrumava as iscas e aprontava tudo; a corrente estava ideal e não iria demorar muito para os grandes aparecerem. Como se tivesse os pensamentos lidos, uma das linhas deu um esticão forte, sinal que um mordera. Esperava que valesse a pena.  A luta ia começar.

No quarto, ele reuniu o resto de força que ainda tinha e foi até o armário no lado esquerdo da janela; apoiou-se na porta, abrindo a outra com a mão livre. Tateou alguns segundos e logo a encontrou, a espingarda Ross que tinha sido presente do pai, aos treze anos, e o acompanhara até então. Abriu-a com esforço, verificando que ainda havia um cartucho no cano. Devagar, levou-a para a cama, colocando-a de lado, para alcança-la fácil. Respirou fundo e aprumou-se, apoiando a coronha no chão, o gatilho na altura do pé. Os pensamentos o levaram à Itália, no revisitar de Fossalta di Piave, onde estivera na juventude , onde se ferira em ação e onde conhecera Agnes, como se tivesse sido há tanto tempo…mesmo isso se desvanecia…

“Esse é dos fortes”, sentia Gregorio, a linha bem esticada. Os pensamentos dele se confirmaram quando o peixe saltou, no correr da luta; era enorme, do mesmo jeito que Papa falara em seu livro. Seria uma luta dura, “Ele com certeza adoraria essa peleja”, pensou. O cliente emudeceu com o tamanho, que jamais tinha visto na vida. Um azul nobre, como pouco se via. Gregorio foi ajudá-lo, pois ele, sozinho , não conseguiria.

Olhou mais uma vez para a janela, os raios do sol agora iluminando todo o quarto. A conversa na sala cessara e só havia o silêncio. Retesou as costas e apoiou o queixo no cano. Vivera uma boa vida, mas agora, nada mais era que um trapo, uma sombra do que fora, uma carcaça inútil; no más Fiesta, Adieu Paris, Adiós Cuba; ele, porém, não iria definhar e morrer, como uma árvore seca; mi muerte mi daré yo mismo. Fechou os olhos e, com o pé, apertou o gatilho…

                                 A correnteza, como que por encanto , serenara; Gregório sentiu a tensão afrouxar, mal contendo o espanto, puxando devagar a linha, sentindo o peso do peixe. Parecia que algo o atingira, deixando-o, de repente, sem vida. Uma sensação estranha o invadiu, enquanto o peixe era içado a bordo. Mesmo com a pesca bem-sucedida e o cliente satisfeito, recusou-se a comemorar.

Ele soube do acontecido no dia seguinte, na manchete do GRANMA: “Papa Está Morto”.  Só então ele entendera.  Papa, do seu jeito, tinha arrumado uma forma de dizer adeus. Lembrou da frase, dita tempos atrás , numa pescaria com ele, “Nunca deixe que o fim te pegue; cuide sempre que seja você mesmo o senhor de seu próprio fim; seja sempre o senhor de sua morte como você é o senhor de sua vida”.

                                   Olhou para o pôr-do-sol no Malecón, a luz rubra no horizonte, e tomou o rumo da Calle Obispo, em busca de um daiquiri. “Papa ia gostar”, dizia, enquanto ia na direção do Floridita.

Com certeza, ele iria achar apropriada tal despedida.

Publicado por Thomé Themistocles-madeira

O que são as palavras, senão desdobramentos do coração e da alma? Assim me mostro ao mundo , me descortino e me descerro; poesia, prosa e imaginação, assim, são partes de meu ser...

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